Autor: Elliot Ross
Um menino passa diante
de um edifício crivado de buracos de balas na capital iemenita, Sanaa. «Rejeitada
pelos académicos, a noção de estado falido encontrou lugar no confuso espaço da
frívola análise política que impregna grande parte dos diálogos nacionais.» Fotografia:
Yahya Arhab/EPA
Na mesma semana que o repórter de
investigação, Jeremy Scahill, referiu que os EUA deviam «tomar um comprimido de
humildade», fomos sujeitos ao preciso oposto – a mais um fascículo do Índice
dos Estados Falidos anual da revista Foreing
Policy, acompanhado de «postais do inferno», com o intuito de nos mostrar
como é «viver na corda bamba, nos piores locais do mundo».
É tentador jogar com as variadas afirmações bizarras do Índice (diz-nos que
o Quénia é «menos estável» do que a Síria), mas a verdade é que tais lamúrias
servem unicamente para dar credibilidade a este entediante exercício anual em pequenez
cultural falsamente empírica. Para as pessoas realmente interessadas em saber
mais sobre locais como o Iémen ou o Uganda, o índice será a última coisa a
consultar. Mas mais interessante ainda – e mais útil para se compreender para
que serve efectivamente o índice – será entender que o próprio conceito de
«estado falido» tem a sua história.
A organização que elabora o índice, a
Fund for Peace, é o tipo de entidade que John le Carré utilizaria para nos
provocar pesadelos. O director, J.J. Messener, (que produz a lista), é um ex-lobista
da indústria militar privada. Nenhum dos dados originais em que se baseia o
índice chegou a público. Então, o que raio levaria uma organização como esta a
querer perpetuar e intensificar a noção do estado falido no discurso público?
A principal razão é que o conceito de estado falido nunca existiu fora do
âmbito dos programas para a intervenção ocidental. Constitui sempre uma forma
de desenvolver pretextos para a imposição dos interesses norte-americanos sobre
as nações menos poderosas.
Felizmente, podemos identificar a origem
de tudo – com números de página e tudo. O estado falido foi inventado nos
finais de 1992, por Gerald Helman e Steven Ratner, dois funcionários
governamentais dos EUA, num artigo publicado pela revista – é isso mesmo ‑ Foreign Policy, sugestivamente
intitulado, «Salvar os Estados Falidos». Os autores argumentam que, com o fim
da Guerra Fria, «surge um novo fenómeno perturbador: o estado-nação falido, completamente
incapaz de se suster, no seio da comunidade internacional». Assim nasceu o
monstro.
O artigo continua com uma versão rabugenta da história do «terceiro mundo»
após 1945, em que Helman e Ratner lamentam o facto de as reivindicações de
«autonomia» por parte dos povos colonizados ter sido instituído como um dos
princípios fundamentais da organização das questões internacionais. Na opinião
de Helman e Ratner, a queda do Muro de Berlim marcou o fim de ninharias como a
soberania dos estados das nações do terceiro mundo. Do que esses estados
falidos precisavam era da sempre benigna «tutoria» do mundo ocidental. É
evidente que nós, os ocidentais, mantínhamos a nossa soberania, enquanto eles
teriam de se contentar com aquilo a que se chama «estado de sobrevivência» e
ser gratos por isso.
A peça de Helman e Ratner desenvolve-se
em torno de um famoso mas pouco lido relatório das Nações Unidas, da autoria do
então secretário-geral Boutros Boutros-Ghali, publicado uns meses antes. Na sua
Agenda para a Paz, Boutros-Ghali recomenda um papel mais abrangente da ONU, na
resolução das crises internacionais, mas insistindo em que a soberania dos
estados permanecesse um princípio inviolável. Se Helman e Ratner demonstrassem
concordar com essa opinião precisamente oposta à deles, não havia mais nada a
dizer, certo?
Nos anos 90, poucos cientistas políticos manifestaram interesse pelo
conceito de estado falido que descartaram desde logo. O problema era em nada
contribuir como modo de análise: uma guerra civil é uma guerra civil. Fome é
fome. Uma crise política é uma crise política. Um estado falido não passa de
retórica sem uma base teórica ou histórica substancial.
Rejeitada
pelos académicos, a noção de estado falido encontrou lugar no confuso espaço da
frívola análise política que impregna grande parte dos diálogos nacionais. A Foreign Policy deu-lhes uma espécie de
vida nova, ao publicar o seu índice anual a partir de 2005, numa altura em que se
tornava cada vez mais notório o desastre que representavam as guerras no Iraque
e no Afeganistão, ambas justificadas como «intervenções humanitárias».
Previsivelmente, feita à medida para defender essa interferência dos EUA no
estrangeiro, a expressão também surgiu na literatura produzida entre 2001 e 2005
que criou a nova norma internacional da responsabilidade a proteger (R2P) –
doutrina cuja aplicação pela comunidade internacional até à data só pode ser
descrita como altamente selectiva.
Por mais métrica da «estabilidade» que tente misturar, o índice dos estados
falidos nada tem de empírico ou objectivo. Não interessa muito onde aparece
determinado país em dado ano. É pura e simplesmente um absurdo colocar a
história numa tabela de classificações e, vendo bem as coisas, o índice diz a
mesma coisa todos os anos: que os EUA deveriam ser uma espécie de regulador
global a que se deveria submeter o resto do mundo.
É uma noção que só oferece ao público americano uma versão do mundo que
nada tem que ver com a realidade, mas que funciona muito bem para racionalizar
as intervenções passadas e presentes no estrangeiro.
Sem comentários:
Enviar um comentário