quarta-feira, 3 de julho de 2013

Os Estados Falidos são um Mito Ocidental

Autor: Elliot Ross



A boy walks past a bullet-scarred building in the Yemeni capital, Sana'a.
Um menino passa diante de um edifício crivado de buracos de balas na capital iemenita, Sanaa. «Rejeitada pelos académicos, a noção de estado falido encontrou lugar no confuso espaço da frívola análise política que impregna grande parte dos diálogos nacionais.» Fotografia: Yahya Arhab/EPA

Na mesma semana que o repórter de investigação, Jeremy Scahill, referiu que os EUA deviam «tomar um comprimido de humildade», fomos sujeitos ao preciso oposto – a mais um fascículo do Índice dos Estados Falidos anual da revista Foreing Policy, acompanhado de «postais do inferno», com o intuito de nos mostrar como é «viver na corda bamba, nos piores locais do mundo».
É tentador jogar com as variadas afirmações bizarras do Índice (diz-nos que o Quénia é «menos estável» do que a Síria), mas a verdade é que tais lamúrias servem unicamente para dar credibilidade a este entediante exercício anual em pequenez cultural falsamente empírica. Para as pessoas realmente interessadas em saber mais sobre locais como o Iémen ou o Uganda, o índice será a última coisa a consultar. Mas mais interessante ainda – e mais útil para se compreender para que serve efectivamente o índice – será entender que o próprio conceito de «estado falido» tem a sua história.
A organização que elabora o índice, a Fund for Peace, é o tipo de entidade que John le Carré utilizaria para nos provocar pesadelos. O director, J.J. Messener, (que produz a lista), é um ex-lobista da indústria militar privada. Nenhum dos dados originais em que se baseia o índice chegou a público. Então, o que raio levaria uma organização como esta a querer perpetuar e intensificar a noção do estado falido no discurso público?
A principal razão é que o conceito de estado falido nunca existiu fora do âmbito dos programas para a intervenção ocidental. Constitui sempre uma forma de desenvolver pretextos para a imposição dos interesses norte-americanos sobre as nações menos poderosas.
Felizmente, podemos identificar a origem de tudo – com números de página e tudo. O estado falido foi inventado nos finais de 1992, por Gerald Helman e Steven Ratner, dois funcionários governamentais dos EUA, num artigo publicado pela revista – é isso mesmo ‑ Foreign Policy, sugestivamente intitulado, «Salvar os Estados Falidos». Os autores argumentam que, com o fim da Guerra Fria, «surge um novo fenómeno perturbador: o estado-nação falido, completamente incapaz de se suster, no seio da comunidade internacional». Assim nasceu o monstro.
O artigo continua com uma versão rabugenta da história do «terceiro mundo» após 1945, em que Helman e Ratner lamentam o facto de as reivindicações de «autonomia» por parte dos povos colonizados ter sido instituído como um dos princípios fundamentais da organização das questões internacionais. Na opinião de Helman e Ratner, a queda do Muro de Berlim marcou o fim de ninharias como a soberania dos estados das nações do terceiro mundo. Do que esses estados falidos precisavam era da sempre benigna «tutoria» do mundo ocidental. É evidente que nós, os ocidentais, mantínhamos a nossa soberania, enquanto eles teriam de se contentar com aquilo a que se chama «estado de sobrevivência» e ser gratos por isso.
A peça de Helman e Ratner desenvolve-se em torno de um famoso mas pouco lido relatório das Nações Unidas, da autoria do então secretário-geral Boutros Boutros-Ghali, publicado uns meses antes. Na sua Agenda para a Paz, Boutros-Ghali recomenda um papel mais abrangente da ONU, na resolução das crises internacionais, mas insistindo em que a soberania dos estados permanecesse um princípio inviolável. Se Helman e Ratner demonstrassem concordar com essa opinião precisamente oposta à deles, não havia mais nada a dizer, certo?
Nos anos 90, poucos cientistas políticos manifestaram interesse pelo conceito de estado falido que descartaram desde logo. O problema era em nada contribuir como modo de análise: uma guerra civil é uma guerra civil. Fome é fome. Uma crise política é uma crise política. Um estado falido não passa de retórica sem uma base teórica ou histórica substancial.
Rejeitada pelos académicos, a noção de estado falido encontrou lugar no confuso espaço da frívola análise política que impregna grande parte dos diálogos nacionais. A Foreign Policy deu-lhes uma espécie de vida nova, ao publicar o seu índice anual a partir de 2005, numa altura em que se tornava cada vez mais notório o desastre que representavam as guerras no Iraque e no Afeganistão, ambas justificadas como «intervenções humanitárias».
Previsivelmente, feita à medida para defender essa interferência dos EUA no estrangeiro, a expressão também surgiu na literatura produzida entre 2001 e 2005 que criou a nova norma internacional da responsabilidade a proteger (R2P) – doutrina cuja aplicação pela comunidade internacional até à data só pode ser descrita como altamente selectiva.
Por mais métrica da «estabilidade» que tente misturar, o índice dos estados falidos nada tem de empírico ou objectivo. Não interessa muito onde aparece determinado país em dado ano. É pura e simplesmente um absurdo colocar a história numa tabela de classificações e, vendo bem as coisas, o índice diz a mesma coisa todos os anos: que os EUA deveriam ser uma espécie de regulador global a que se deveria submeter o resto do mundo.
É uma noção que só oferece ao público americano uma versão do mundo que nada tem que ver com a realidade, mas que funciona muito bem para racionalizar as intervenções passadas e presentes no estrangeiro.



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